sexta-feira, 13 de julho de 2018

O voo da borboleta


(caio silveira ramos)

Conheci Marisa Pimentel quando ela trabalhava no protocolo do setor de administração de recursos humanos.  Marisa era muito gentil no atendimento, mas só trocávamos um “boa-tarde-obrigado”.  Foi então que a Olívia Gurjão, que sempre incentivou minhas palavras, me disse que a Marisinha escrevia poemas. E na vez seguinte em que fui protocolizar alguns documentos, saí da sala com um livro escrito por ela: “Poetrix e Sentimentos”.
Fiquei sabendo que “Poetrix” era um gênero de “poema com um máximo de trinta sílabas métricas, distribuídas em apenas uma estrofe, com três versos (terceto) e título” (http://www.goulartgomes.com/visualizar.php?idt=1402080) criado pelo poeta baiano Goulart Gomes.    O livro de Marisinha tinha versos muito inspirados, mas fiquei mesmo admirado com a qualidade e a intensidade de outros “Poetrix” que não estavam em sua obra e que ela foi aos poucos me mostrando.  E pela poesia, ficamos amigos.
Mas nossa amizade ultrapassou a poesia quando João Pedro nasceu em 2008: Marisinha se apaixonou por meu filho de tal forma que se autoproclamou “a terceira avó”.  Talvez aquele “título” procurasse subentender o profundo carinho que tinha por mim e que agora se materializava naquele parentesco ainda que postiço. Mas o fato é que ela nunca se cansou de me pedir fotos novas do pequeno. Com elas, estampou uma caixa de madeira (que nos presenteou para guardarmos fotos novas impressas) e preencheu a tela inicial de seu computador do serviço.  E pra quem chegasse para pedir orientações ou protocolizar algum papel, ela virava a tela e falava: “meu neto não é lindo?”, “olha como ele cresceu!”, “não tá a cara da avó?”, “que olhar inteligente!”, “fala a verdade, mas ele não é lindo demais?”. 
João Pedro foi crescendo e as fotos na tela foram acompanhando cada uma de suas fases.   As pessoas já até perguntavam se ela tinha fotos novas, como estava passando seu netinho, se ele já estava na escola, coisas assim.  Quem me encontrava, dizia: “você que é o pai do neto da Marisinha?”.  “Nossa, vi seu filho: como está bonito!”.  “Seu filhinho já está andando, que graça!”.  O melhor foi um taxista do ponto em frente ao serviço: “não sabia que a Dona Marisa era sua sogra...”
Todo dia 18 de cada mês, era infalível: ela ligava ou mandava mensagens: “João Pedro, meu querido netinho. Parabéns pelos seus tantos anos e tantos meses. Vovó Marisinha te ama muito. Beijos, beijos, beijos”.    E ela nunca errava a data e o número de meses.   Muitas vezes encaminhava também um chocolatinho, um adesivo bonito, uma revista de palavras-cruzadas ou um brinquedinho singelo.  Num dos aniversários do pequeno, a corintianíssima Marisa chegou a presenteá-lo com uma camisa “retrô” do Palmeiras com o nome do pequeno estampado nas costas. E mesmo dizendo que a compra tinha deixado nela uma coceira alérgica, pediu: “depois me manda uma fotinho dele com a camisa nova?”.
E para ele, e para mim, e para as pessoas que eu queria bem, ela mandava cartinhas carinhosas ou presentinhos. Pequenas lembranças abrigadas em embrulhos caprichados e sempre enfeitados com sua indefectível marca: o adesivo de uma borboleta delicada.
De tal delicadeza que parecia se desmanchar durante o voo.

***
Marisa era tão delicada quanto as borboletas em forma de adesivo que ela usava para enfeitar seus embrulhos de presente, suas cartas e seus recados.  Uma borboleta passeando num pântano povoado por monstros não tão gentis.
Em suas fotos antigas, ela, menina, parecia ter um olhar frágil e desamparado. Quase triste. E assim penso que foi a vida toda. Mas ao mesmo tempo, seus poemas, seus bilhetes, sua história de paixão e dor, sua necessidade de amar e ser querida revelavam a ânsia de viver com intensidade. O que muitas vezes a fazia sofrer e se ferir.
E a sensibilidade da alma se irradiava pelo corpo: Marisinha tinha uma saúde frágil. O coração necessitado de cuidado.   A diabete violenta incomodando seu apetite quase maroto por bolos e docinhos.
Do coração, por temores, se descuidou.  Da diabete, por doçura, se deixou levar.  O que importava era a ternura incontornável que tantas vezes sua vida parecia testar.  Um dia partiu uma paixão. Em outro, o amado irmão Paulinho.  Também partiu a mais querida das tias, Ione, que tinha se ausentado muito antes, carregada pelo Alzheimer, mal que Marisinha poeticamente dizia que provocava “saudade de quem não se foi”.
Para evitar novas dores, foi morar sozinha num apartamento pequeno, que ela decorou com todo seu capricho.   Com habilidade, bom gosto e orçamento apertado, deu para criar faixas para cabelo, tiaras, colarzinhos, cachecóis e cintas feitas de tecidos e lãs, que ela vendia por preço muito inferior ao tamanho da arte. Ou simplesmente dava de presente a quem lhe ofertasse um simples sorriso.   Mas Marisinha não ficou sozinha por muito tempo: com ela foram morar, em períodos diferentes, dois sobrinhos que ela cuidava com ternura de mãe zelosa, chegando a dizer que se divertia ao passar suas camisas.
Mas a diabete não deu tréguas a sua doçura. Castigou seus pés e seus olhos, obrigando a aposentadoria do serviço, de suas criações e de suas novelas.  O tratamento da saúde ocular, deficiente e espaçado, roubou-lhe quase toda a vista e a atenção para seus outros males. 
Num dia 18, disse que apenas ligava para cumprimentar seu “amado netinho João Pedro pelos tantos anos e tantos meses” porque não enxergava direito para também mandar uma mensagem pelo “Whatsapp”.  Num outro dia 18, falou pelo telefone fixo, pois não conseguia mais ligar pelo celular. Dessa vez ela não conversou diretamente com ele: “por favor, dê, ao meu querido netinho João Pedro, parabéns pelos seus 9 anos e 3 meses. Diga também que vovó Marisinha o ama muito. Beijo, beijo, beijo”.
No 18 seguinte, ela não pôde ligar. No outro, também não.
E em 2018, no dia 11 de janeiro – data para mim de alegria e dor -, a borboleta voou, voou, voou até desaparecer em toda a sua delicadeza.
E a cada dia 18 – outra data de paixão e tristeza –, eu e João Pedro nos lembraremos especialmente dela.   Voando, voando, bulindo com nossa memória.
Floreando nosso caminho.

Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 21 e 28/1/2018



Nenhum comentário:

Postar um comentário

INFINITE-SE: