quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Em busca da ternura perdida (apontamentos sobre a obra de José Mauro de Vasconcelos) - I

(caio silveira ramos)

“Minha vida está toda errada: por que Deus simplesmente não aperta a tecla ‘delete’?”  
Mesmo concentrado em seu almoço, o homem não pôde deixar de ouvir o comentário tão dramático da moça da mesa ao lado que conversava com uma amiga sobre sua necessidade de ser amada profunda e infinitamente.   Talvez pudesse parecer estranho que uma moça tão bonita (e que, enquanto conversava, movimentava as mãos feito um bailado) tivesse esse tipo de queixa, principalmente porque lamentava o término de um namoro que tinha acabado por vontade sua: “será que estou agindo certo? Ele era tão bom, gostava de mim, mas acho isso pouco, burocrático, quero mais, mais!”
Achei graça quando ouvi essa história, já que o “deletar” pareceu assumir pela primeira vez um sentido muito mais dramático que o simples “apagar”, embora, ao que parece, a moça pretendesse exatamente o contrário: ela queria era viver intensamente.  Exageradamente.  
Exageros.   Eu pensava justamente nisso quando aceitei participar do livro “Assim você me mata”, editado pela Terracota, cuja proposta era reunir vários autores para uma antologia de contos que deveria ter por tema “o universo brega”. Quando parti para escrita, percebi que a construção de um texto com o objetivo consciente de expor o quer que fosse considerado como “brega” era artificial. Isso acabou resultando em uma mistura de conto e ensaio – com mais notas de rodapé do que texto, para parodiar o academicismo oco e a preocupação excessiva da literatura atual com a forma –, que justamente procurava questionar o que seria brega e, em último caso, a própria finalidade da antologia. 
Entre muitos itens, comentei sobre a obra do escritor José Mauro de Vasconcelos que, nas raríssimas vezes em que foi abordada pela crítica, sempre foi rotulada como exageradamente sentimentalista e de qualidade duvidosa.   Estranhamente, seus livros nunca sofreram estudos aprofundados ou análises minuciosas e, pelo que sei, ele jamais foi objeto de dissertações ou teses.  Em meu conto-ensaio, me propus a fazer tal análise no futuro, ainda que eu esteja afastado dos bancos acadêmicos.   Neste Mirante, começo, a partir de hoje (e em crônicas esporádicas), a tratar de cada um dos livros de José Mauro de Vasconcelos.  Não irei expor aqui – e nem caberia neste espaço –, teorias literárias: serão resumos, análises simples e quase sentimentais, que poderão no futuro servir de embasamento para estudos (meus ou de quem se interessar pela obra do escritor) mais rigorosos e acadêmicos.
Desde que o livro de contos foi publicado e tornei clara a minha intenção de estudar os textos de José Mauro de Vasconcelos, amigos começaram a me mandar pequenas notícias relacionadas a ele. Uma delas tratava do discurso de posse de Paulo Coelho na Academia Brasileira de Letras.   Lá pelas tantas, Coelho, bem no seu estilo, homenageou José Mauro: “Jamais li um livro seu, mas não posso perder este momento único para agradecê-lo por ter levado seu trabalho aos quatro cantos do mundo, ajudando a mostrar às mais diferentes culturas o que existe na alma intensa e comovente do povo brasileiro”. 
É no mínimo curioso homenagear um escritor admitindo nunca ter lido sua obra (e ainda assim revelando seu conteúdo, Ah! Ele é mago...), mas Coelho quis chamar atenção para aquilo que lhe é, sem trocadilhos, realmente caro: José Mauro foi um dos escritores nacionais que mais vendeu livros no Brasil e no mundo.  Eu, por outro lado, que me impus a ingrata tarefa de ler cinco livros de Paulo Coelho, constato que, se ambos são bons vendedores de livros (ou foram: Vasconcelos anda esquecido) e por isso foram muitas vezes criticados, suas produções são profundamente diversas.
Avessos à ostentação, José Mauro e sua obra rejeitam o misticismo oportunista para tratar do sentimento humano.  Se esse sentimento é revelado, de acordo com as poucas críticas, de maneira piegas, se seus enredos são permeados pelo melodrama pueril para fazer chorar as almas menos sofisticadas, se seu texto dialoga com a poesia singela e apresenta um estilo quase descuidado, isso tudo é outra história. História que tentaremos desvendar passo a passo, (re)lendo seus livros, mergulhando sem receio nas suas fábulas que dão vozes a árvores, sapos e dezenas de outros seres imaginários.
O que me parece claro desde já – eu, que ao contrário de nosso internacional “imortal”, sou leitor de Vasconcelos –, é que seus livros tentam recuperar a ternura que se esmaece durante a vida.  Ternura que escritor expõe de modo rasgado e quase palpável: a ternura de José Mauro chega a doer.
Sentimentalismos superficiais ou profundas delicadezas?  A obra de Vasconcelos revela todos os tons do sentimento humano e por isso pode acolher desde os excessos da bonita moça que exageradamente pede a Deus que a delete (mesmo que seu desejo seja o de viver intensamente para ser amada), até as meiguices do homem que almoça quieto, mas que à noite, antes de dormir, marejará docemente os olhos relembrando as pessoas que conheceu desde a infância ou pensando, com profunda ternura, na bela desconhecida da mesa ao lado que com uma amiga fala de amor.
Não se trata de literatura de autoajuda: nos livros de Zé Mauro, a moça não encontrará maneiras de controlar sua vontade de viver intensamente ou o segredo para ser ainda mais amada.  Nem o homem sossegará sua dor de amar demais.
Exagerados e ternos, eles simplesmente se encontrarão nas páginas de um livro de José Mauro de Vasconcelos.

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 22/2/13

Nenhum comentário:

Postar um comentário

INFINITE-SE: