quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Escritor de orelha

(caio silveira ramos)

De uns tempos para cá, me tornei um escritor de orelha. 
De orelha de livros. Por sorte minha, amigos talentosos (e generosos) me convidaram para fazer pequenas apresentações de suas obras.  E eu, encabulado, mas agradecido (ou desavergonhado?) tentei não atrapalhar a riqueza das palavras alheias.
Em 2012, dois grandes presentes para mim: uma orelha para “Outono do meu tempo” (Scortecci Editora), de Fernando Szegeri – fabuloso cronista da era da internet (mas com o coração fincado na conversa fraterna da mesa de um bar) –, e outra para os contos (principalmente de ficção científica) de “O grito do sol sobre a cabeça” (Editora Terracota), de Brontops Baruq, um dos mais fabulosos escritores contemporâneos.   Por fim, em 2013, a orelha para “O coringa do cinema” (Editora Giostri), de Matheus Trunk, profundo conhecedor dos mistérios da Boca do Lixo paulistana.
Nesses tempos de “ditadura da imagem” (e de lembranças de outras infelizes ditaduras), este Mirante dobra a orelha até 2011 e relembra o texto para o divertido “Gordo de A a Z”, de Gaspar Bissolotti Neto (Scortecci Editora):

Salve o prazer

Poucos têm sofrido tanto preconceito quanto os gordos: padrões de beleza impostos pela mídia e pela moda geram sofrimento para milhões de pessoas (inclusive crianças) que se veem rotuladas como fracas de caráter, pecadoras, doentes e esteticamente prejudicadas...
“Esteticamente prejudicadas”? Francamente: o gordo é taxado de medonho para baixo.  Já vejo aquela madame seca e seu estilista (que faz roupa para cabide e não para gente) comentarem sobre uma linda moça rolicinha, toda feliz com seu pedaço de bolo de chocolate, e sobre o autor Gaspar Bissolotti Neto: “que gente gooorda e hor-ro-ro-sa!”
Pois Bissolotti veio para dar uma tortada na cara (que desperdício!) nesse “bom gostismo” azedo (“doce? Não, obrigado, estou de dieta”) que determina o que é belo, mas se esquece que esqueleto é pra baixo da terra. Com seu verbo afiado, o grande Gaspar (gordo de corpo e alma) esconde por trás do auto-humor, setas certeiras de indignação e de liberdade.
Ele parece dizer: abaixo a “modelo-manequim e atriz” que diz comer de tudo, mas vive com uma barrinha de cereal a cada quinze dias! Abaixo o narciso de academia que se enoja com celulites charmosas.
Soltem os cintos! Quem gosta de osso é cachorro! Saúde sim, patrulhamento calórico jamais!  Salve as baleias e os anjos barrocos. Viva a pança de Sancho, Obelix e as curvas de Druuna! Viva Mônica, Preta Gil e o Marquês de Rabicó. Viva as mulheres que valem por duas e as que passeiam pelos sonhos dos trabalhadores da construção civil! 
Sob as palavras recheadas e suculentas de Gaspar, gordos de todo mundo, uni-vos!
Mas por favor, não de um lado do só do globo que pode provocar o deslocamento do eixo da Terra.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em  4/4/2014

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