sábado, 18 de outubro de 2014

Triste Madrugada

(caio silveira ramos)

Generoso, alegre, feliz: Jair Rodrigues foi tudo isso.  E acima de qualquer coisa – que isso não seja deixado pra lá –, foi um grande artista. 
Jair partiu no dia 8 de maio de 2014.  Seu corpo foi velado no “Hall Monumental” do prédio onde trabalho. Perto da minha sala. Tive que passar pelo “Hall” naquela madrugada triste, mas não me aproximei: queria conservar na memória a imagem dele tal qual conheci na minha infância: a alegria personificada e estampada na capa do LP “O Sorriso de Jair” (o disco do sucesso “Disparada”, de 1966).   Queria também guardar para sempre a voz que deu vida ao “Triste madrugada”, samba composto por Jorge Costa, artista que há muito tempo luto para que não seja esquecido.  
No meu “Sambexplícito: as vidas desvairadas de Germano Mathias” (editora A Girafa, 2008), justamente em um capítulo dedicado a Jorge Costa, escrevi uma singela nota sobre Jair.  Segue o texto em forma de abraço:

“Quando Jair Rodrigues lançou seu LP Jair, de 1967, pela Philips, com a faixa Triste madrugada (aliás, a primeira do lado A), já era um dos maiores astros da música brasileira. Ele já tinha alcançado os primeiros lugares nas paradas de sucesso com Deixa isso pra lá (Alberto Paz e Edson Meneses), Disparada (Geraldo Vandré e Théo de Barros) – música que na interpretação de Jair dividira o primeiro lugar do II Festival da Record (1966) com A Banda de Chico Buarque de Holanda –, Vem chegando a madrugada (Noel Rosa de Oliveira e Adil de Paula, o Zuzuca), Tristeza (Nilton de Souza e Haroldo Lobo), e também com seus vários duetos com Elis Regina, sua companheira na apresentação do programa de televisão O Fino da Bossa e nos dois LPs Dois na Bossa (obs. o LP Dois na Bossa nº 3  foi lançado após o disco Jair).
 Muitos críticos classificam o estilo de Jair como histriônico, mas ao que parece nem esses críticos parecem negar o pioneirismo como uma das marcas fundamentais de sua carreira. Jair foi pioneiro ao se consagrar na década de 60, ao lado de Wilson Simonal e de Jorge Ben (esse, naquele momento, menos que os outros dois), como um dos primeiros mega-astros negros brasileiros. De fato, excetuando o fenômeno Orlando Silva – que se tornara um estrondoso sucesso entre as décadas de trinta e quarenta do século XX –, a sociedade brasileira e a mídia que a refletia tinham enorme resistência em aceitar artistas negros como ídolos. Ainda que geniais compositores e intérpretes das épocas mais variadas, como Baiano, Sinhô, Pixinguinha, Jorge Veiga, Ciro Monteiro, Caco Velho, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga (só para citar alguns) tenham conseguido êxitos consideráveis em suas carreiras, em nenhum momento atingiram o grau de sucesso – no sentido que hoje poderia ser chamado de “estrelato pop” – de Orlando, Jair e Simonal. Se Jair viu sua carreira declinando aos poucos, mas sem nunca cair totalmente no ostracismo, o primeiro e o último pagaram caro por terem afrontado, mesmo que inconscientemente, o preconceito. E acabaram suas vidas condenados a um inquisidor esquecimento. Aos poucos, porém, a importância de ambos está sendo resgatada.
O pioneirismo de Jair também está ligado a sua coragem de lançar gêneros musicais. Com o já citado Deixa isso pra lá, gravado na década de 60, ele antecipou em muitos anos o lançamento do rap (inclusive americano), estabelecendo uma fusão com o samba que até hoje não foi conseguida por muitos MCs. (Metanota: Moreira da Silva brincava dizendo ser o pioneiro do rap, só que de uma forma aprimorada: não fazia ritmo e poesia com monólogos, como a maioria dos rappers, mas com diálogos). No LP O Sorriso de Jair (Philips – 1966), Rodrigues lançou o jequibau – espécie de samba em andamento 5/4 –, com a faixa No Balanço do Jequibau, de Mário Albanese e Cyro Pereira. Na década de 1970, Jair foi um dos primeiros a transformar sambas-enredo em sucessos de vendas (inclusive fora do período carnavalesco), com as gravações de Festa para um Rei Negro e Tengo Tengo (Mangueira, Minha Madrinha Querida), ambos de Zuzuca (Adil de Paula), e também de Heróis da Liberdade (de Silas de Oliveira, Mano Décio e M.Ferreira).  Anos depois, resgatou o movimento seresteiro com seus dois LPs Antologia da Seresta (embora já tivesse gravado inúmeros clássicos desse repertório anteriormente, como Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Silvio Caldas, e Velho Realejo, de Sady Cabral e Custódio de Mesquita). E ainda ousou uma (muitas vezes criticada) aproximação com a música caipira (que já o arrebatava desde a consagração de Disparada, em 1966), com a antológica gravação, em 1985, de Majestade, o sabiá, de Roberta Miranda.
Por fim, não se pode esquecer que Jair Rodrigues foi um dos primeiros grandes cantores populares a divulgar os sambistas da Bahia (como Ederaldo Gentil e Edil Pacheco), e que gravou muitas composições do lendário Venâncio, inclusive o clássico O Último Pau-de-Arara (no LP Talento e Bossa de Jair Rodrigues – Philips – 1970).”

Essa foi a nota sobre Jair Rodrigues.
Mesmo com a singeleza do texto, acho que ele me abraçaria forte para me erguer lá no alto.
Me abraçaria.
Para a tristeza, sem favor, ir embora.   


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 30/5/2014

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