(caio silveira
ramos)
A Loja do Toninho ficava na esquina da Moraes Barros com a parte
de cima do Largo Santa Cruz. Atravessando a Moraes, na outra
esquina, ficava a loja de brinquedos da Bem. Certo, certo: podia
até não ser apenas uma loja de brinquedos. E talvez a dona (seria dona?) não se
chamasse Bem. Mas eram os dois fatores
que ali me interessavam: os brinquedos – de lá que vieram o tratorzinho amarelo
de pedal e um caminhãozinho de lata – e a moça bonita que atendia aos clientes
no balcão e tratava todo mundo (principalmente eu) por “bem”. Para minha tristeza, a Bem foi embora pouco
tempo depois e a Loja do Toninho, com seus tecidos e roupas, atravessou a rua e
ocupou seu lugar. Ficou no seu espaço antigo uma lotérica que oferecia
apostas da Esportiva - numa fase pré Lotos, Senas e Mega Senas, quando os
cartões eram perfurados e mostravam apenas treze jogos - e bilhetes da Loteria
Federal.
Na esquina inferior da Moraes Barros com a rua Santa Cruz ficava
o armazém do seu Stolf, que morava ali perto e gostava de
passarinhos. Foi naquele armazém que ficou a memória mais viva que
tenho do vô Sylvio: num dia de mãos dadas e sol, após encontrarmos por acaso
meu padrinho, seu Arlindo Rufato, eu e o avô (perfumado e arrumado com sua
gravata borboleta) compramos um grande pacote de bolacha de maisena “Júpiter”
que, na embalagem de listras azuis e brancas, tinha estampado um galinho
empurrando uma carriola. O perfume suave do seu Sylvio ainda passeia por
aquela esquina que, tempos depois, abrigou o bar do Pedro, autor do melhor
x-salada do mundo. Mas o Pedro também se foi, levou embora o sanduíche e me
deixou muda a Tubaína.
Descendo a Moraes, depois do armazém, ficou um trecho
perdido. Não me lembro muito bem nem das casas, nem das pessoas. Me
recordo só do menino grande Fred, que vivia no seu tempo paralelo.
A razão do esquecimento desse trecho é que, depois do armazém do seu Stolf, eu
me escondia debaixo da blusa da minha mãe para passar em frente da loja de
móveis do seu Alfredo. Eu alegava vergonha e não medo: quem temeria
aquele velhote baixo, de suspensórios, nariz de pardalzinho e sorriso
tranquilo? Mas nem sequer encabulamento era. A verdadeira razão do
esconderijo é que, no fundo, nós dois tínhamos um secreto pacto nunca falado:
eu fingia que tinha medo dele e ele ria do meu fingimento. Ríamos os dois
da brincadeira. E continuamos a brincar de esconde-esconde.
Até que ele se escondeu para sempre e eu nunca mais o vi.
Passando a loja do seu Alfredo, eu saía debaixo da blusa da
minha mãe e meu olhar continuava seu passeio descendo a Moraes. Então
vinha o Bar do Piau, com seus pôsteres de artistas pregados na parede, baleiros
giratórios sobre o balcão e paçocas quadradas dentro da boca. Depois, a “Casa
de Oração” e a figura inconfundível de sua zeladora, dona Mariquinha, de coque,
fala risonha, cotovelos apoiados na grade do muro baixo e olhar feliz por
acompanhar o movimento da rua através dos óculos de aro quadrado e escuro.
A seguir vinha a casa de dona Amélia e seu Idiarte
Massariol. Uma das maiores lendas do E. C. XV de Novembro, seu Idiarte
segredou ao filho Paulinho todos os mistérios da bola – tanto que o rapaz (um
dos meus ídolos de infância) foi artilheiro do Campeonato Brasileiro de 1978
pelo Vasco da Gama. Quando dei por mim, Paulinho era famoso, morava no
Rio de Janeiro e já era figurinha do “Futebol Cards”, mas sua irmã Renata, moça
de doces olhos risonhos, me arranjou uma foto autografada dele com a camisa do
Vasco, que eu levei gloriosamente na escola no dia seguinte.
Então, logo abaixo, se materializava a casa mais feliz do
quarteirão. Uma casa que parecia ter sido feita especialmente para
abrigar crianças, muitas crianças, com seus quartos grandes e um pátio
formidável e gigantesco para jogar bola e andar de bicicleta. E um
quintal cheio de bichos miúdos, plantas e árvores – um pé de fruta-do-conde e
um caquizeiro – que deixavam a molecada subir pelos seus troncos ou pendurar
uma velha mangueira de chuveiro nos seus galhos, para muitos tarzans passearem
de cipó.
Talvez, tantas outras crianças tenham sido também atraídas para
aquele lugar, porque naquela casa dormia eternamente um fogão à lenha ao lado
do tanque: ali, fazia muito anos, tinha morado uma doceira, dessas de lenço na
cabeça, colher de pau na mão e tachos cheios de delícias, que deviam ser
raspados pelas antigas crianças que flutuavam pelo lugar.
E os aromas todos ficaram rondando por ali, se misturando a
outros, novos ou eternos, atraindo outras crianças que chegaram também pelos
cheiros das histórias transbordadas dos livros ou das músicas que se arteiraram
pelas orelhas das janelas daquela casa.
Uma casa feita para crianças de todo o mundo.
***
Depois de parar para me lambuzar no tacho doce e quente de uma casa
cheia de livros, sons e crianças (e ali guardar minha alma para sempre), é hora
de seguir caminho com os olhos e dar uma espiada na casa seguinte. Lá
estão seu Francisco Perecin, dona Helena, Nino, Quinho, Bel e, claro, Maria
Helena, com seu sorriso ensolarado. O presente-passado se rodopia e na
mesma casa estão agora seu Rolim, dona Natalina, seus filhos e o pastor alemão
Bob, que revela toda sua braveza na janela da frente ou num buraco do muro por
onde se vê seu focinho de lobo mau.
Antes que a família de Fernando Zocca
chegue para morar no mesmo lugar, já dá para avistar seu Nello Travaglini na
sacada da casa seguinte (lá no alto, sobre a loja de móveis). Ele cumprimenta
com sua voz adoniranzada e, lá embaixo na rua, quando menos se espera, a porta
da casa se abre e dona Eva me entrega um pirex de polenta frita ou de bolinho
de chuva. Se for segunda-feira, eu ganho, além de um beijo alegre e
estalado no rosto, uma travessa enorme de almôndega com macarrão caseiro, já
que dona Eva preparou uma porção de massa a mais no domingo só para me
presentear no dia seguinte (quando a macarronada fica ainda mais gostosa).
Depois da loja de móveis (que de repente virou uma de sapatos,
não... já é de instrumentos musicais, não, não agora é um bar que toca
tecnobrega), vem, com seu portão baixo de madeira, a casa de seu Calil e da
doce dona Marieta. Casa que um belo dia se metamorfoseou em uma
floricultura cultivada pela alegria da filha do casal, dona Terezinha.
E antes que na casa de baixo se silenciem as notas do acordeon
de seu Orlandinho, inspiradas na sua amada Euremi, é hora (mesmo que num tempo
preteritado) de atravessar a rua, passar com cuidado em frente ao Paulinho
Lanches, dar uma olhada na loja de colchões ou acompanhar a moça que, num
passado-presente trancado a sete chaves, visita a estação de rádio (que
funciona no andar de cima da loja de colchões: ou já é uma papelaria?) para
pedir uma música que ainda flutua no tempo. Mesmo num passado-presente trancado
a sete chaves.
Talvez não tão trancado assim: em apenas alguns segundos é
possível mergulhar nele, revirá-lo, revivê-lo, visitando cada uma das casas,
cada uma das almas.
Ou então, se as sete chaves estiverem perdidas, é só dar alguns
passos e procurar seu Geraldo Vecchini, mestre das sete, das setenta, das mil e
uma chaves e de todos os fogos.
E todas as portas se abrirão com alegria.
***
De segunda a segunda (pois no domingo ainda ecoam os rojões
comemorando a entrada do XV no Barão de Serra Negra), sob a tempestade ou o sol
forte, seu Geraldo, dona Beth, os filhos Geraldinho e Lecenira (que desde que
teve aulas de violão com a Ruth se tornou parte da família de seu Miro e dona
Janda) sempre abriram todas as portas, sempre iluminaram todos os céus da
cidade com o incansável amor por aquela loja. Eles e todos aqueles que
foram chegando com o tempo para trabalhar naquele lugar. E quem passa por
ali parece até que pode ver seu Fernando, pai de seu Geraldo: com as costas
apoiadas na entrada da loja (logo abaixo das estampas dos santos juninos), lá
está ele, observando tudo com a majestade e a placidez de uma divindade que
controla todas as portas e todos os trovões.
Depois de palmilhada a calçada das chaves douradas, é hora de
ver no passado-presente eterno a casa de dona Dora, seu Pilli e seus filhos,
que me legaram uma sanfoninha de madeira e sons mágicos. Mas agora é
preciso andar, passar pela loja dos Araújo... não, não, eles já atravessaram a
rua e quem está lá agora é seu Bellini. Agora? Que já faz anos que ele está lá,
humilde e quieto, trazendo sons aos rádios, imagens às TVs e vida para sua
família.
Então, desafiando presentes, passados e futuros, se revela a loja
de seu Said e dona Terezinha Chalita. Ali, na esquina da rua Moraes
com o Largo Santa Cruz, na calçada onde a banca de seu Alécio expunha nas
feiras da terça, suas sacas de arroz, feijão, batata, cebola e sorriso.
A Loja Chalita, com seus panos desenrolados sobre o balcão. Com suas
caixas de botões e linhas – que depois se transformam em trenzinhos de vagões infinitos
–, com seus antigos carretéis de madeira de diversos tamanhos, que, colados um
atrás do outro, do menor para o maior, viram uma luneta de pirata para enxergar
novos mundos e mirantes perdidos. A Loja Chalita, com sua máquina de costura
funcionando feliz feito o sorriso eterno da filha Cibele. A Loja Chalita, com o
amor de seu Said e dona Terezinha, que, depois do capuchino e da travessa da
salada de frutas, passeia pelas calçadas e sobe de mãos dadas a rua Moraes
Barros a caminho da Igreja Bom Jesus do Monte.
Então, um dia, dona Janda descobriu que dona Terezinha tinha uma
voz além da voz. E que ela deveria procurar um professor para revelar todos os
seus cantares escondidos. E a voz e todos os cantos se revelaram, aos
oitenta anos. Se revelaram, ganharam palcos, altares e finalmente chegaram a
uma gôndola em Veneza.
E foi assim que o amor de seu Said e dona Terezinha, feito os panos
coloridos sobre o balcão, se desenrolou nas águas, atravessou os canais, chegou
ao mar e se espalhou pelo mundo inteiro.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no
Jornal de Piracicaba em 11 e 25/10 e 8 e 22/11/2013
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