sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Algemirando (2): enxada, giz e destemor

(caio silveira ramos)


A crônica Algemirando (I) do Caio inspirou-me a escrever algumas lembranças daquele tempo tão bom em que, minha família e eu, passamos boa parte das nossas vidas, num casarão antigo, situado na movimentadíssima região central de Piracicaba.
Meus filhos Gustavo, Guilherme, Nice e eu, fomos vizinhos do professor Algemiro, da queridíssima Jandyra e seus filhos, quando morávamos e tínhamos escritório de advocacia à Rua Morais Barros durante a década de 1980.
Eu mantinha a banca, onde atendia clientes, elaborava as peças processuais, lia jornais e ouvia rádio, na sala da frente da casa. Era equipadíssimo o escritório; entretanto o estado de conservação do quintal não deixava de ser um caracterizador da vergonhosa omissão.
Eu não cuidava daquele trecho, e Nice, apesar de se desdobrar na higienização da casa, no cuidado com os meninos, na alimentação e tudo o mais, também não podia fazer nada, com aquela espécie de ‘selva amazônica’ particular.
Numa ocasião o professor Algemiro, conversando com Nice e os meninos, propôs-lhes a feitura de um campinho de futebol no local.
A molecada vibrou com a ideia, Nice ficou na expectativa e eu, quando me falaram, não opus embargo.
Então o saudoso professor, usando habilmente uma escada apareceu e, transpondo corajosamente o muro, pôs-se a erradicar a erva daninha, aplainando depois o terreno.
Em seguida, usando meia dúzia de sarrafos, ele construiu as traves dando por encerrado, para a alegria incontida dos pimpolhos, os trabalhos daquela espécie de ‘Itaquerão’ do centro.
Gustavo e Guilherme, hoje na faixa dos 30 anos, lembram-se com muita alegria, dos momentos em que passavam horas e horas na casa dos professores Algemiro e Jandyra conversando, ouvindo histórias e aprendendo a jogar xadrez.”

Muitas lembranças retornam com essa história, mas Fernando Zocca parece me fazer recordar algumas faces de meu pai: um homem que não discriminava pessoas e trabalhos, quaisquer que fossem suas naturezas ou origens.  Fosse a enxada e o martelo, a caneta e o giz, com o mesmo capricho e destreza ele domava todos os instrumentos. E com o mesmo amor que arava a terra, encantava a mente dos alunos.
A crônica de Fernando Zocca também revela que o Professor Algemiro era um homem destemido. Não me lembro nem da palavra “medo” saindo de sua boca ou de qualquer gesto que indicasse um titubeio diante do perigo. Mas diferente daqueles que são destemidos por irresponsabilidade, psicopatia ou desamor pela própria existência, sua ausência de medo se destacava justamente na sua paixão pelo outro, pela vida. Pela generosidade de sua alma de portas abertas.
Por fim, Dr. Zocca  deixa nas entrelinhas o que ninguém duvida: o Professor Algemiro tinha ao seu lado a companheira certa, que sempre estendeu sua mão com a mesma generosidade (e com o mesmo destemor) de quem ama a terra e o papel. Papel onde também moram letras e notas musicais.
E ela estendeu sua mão para que a alma dele voasse sem freios.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 5/4/2013

Um comentário:

  1. Foi entre meus 14 e 15 anos que tive Argemiro e Jandyra como professores. Português e Música. Muito aprendi com ambos. Aprendi a aprender. Aprendi que ensinar é trocar conhecimentos. E aprendi muito mais do que apenas Português e Música e esse legado acompanhou sempre minha profissão: professora.

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