(caio silveira
ramos)
“Coração de Vidro” (1964) pode ser enquadrado dentre os livros infantojuvenis de José
Mauro de Vasconcelos, embora eu esteja convencido que a literatura para
crianças deva ser tratada como assunto de gente grande.
Diferentemente da maioria dos autores presentes no mercado editorial
infantojuvenil – dividido entre os que menosprezam o discernimento da criança e
aqueles que agradam apenas ao adulto, seja pela aparência de suas publicações
ou pelo conteúdo “edificante” de suas obras que muitas vezes não atinge os
pequenos –, José Mauro narra suas histórias com a sabedoria que só os grandes
autores têm: ele escreve para crianças valorizando sua inteligência e
sensibilidade. E se faz compreender sem
enfado e com encanto pelos adultos.
Com o título do livro (declaradamente) retirado do verso “Estala, coração de vidro pintado!” do poema “Esta
velha angústia,” (1934), escrito pelo heterônimo pessoano Álvaro de Campos, a
obra, dividida em cinco partes, tem forma, conteúdo, desenhos (do próprio
autor) e ilustrações (de Gioconda Uliana Campos) que remetem ao universo
infantil.
Na introdução (“Cenário: A Fazenda”), Vasconcelos contrapõe a beleza e
a força natural do lugar ao poder de destruição do ser humano, expondo a ideia
que vai nortear todo livro: “mas os homens estragavam tudo...”
Em “A Missa do Sol”, a “História número um”, ele trata das desventuras
de um azulão engaiolado, que relembra, com inconformismo e tristeza, sua vida
livre na fazenda. A prudência –
confundida com o medo –, representada pela passarinha Iracema, e o desejo de
liberdade acima da fome, da sede e da própria vida marcam um conto cheio de
melancolia, dor, mas ainda assim, coado pela ternura.
A “História número dois: O Aquário” narra a vida do peixinho vermelho
Clóvis. Do açude da fazenda, passando por um grande tanque de uma loja, até o
aquário de uma casa elegante, o presunçoso e egoísta Clóvis vê seu mundo
desmoronando até ser tomado pela solidão e engolido pela indiferença
humana. Um conto cru e forte.
Na “História número três: O Cavalo de Ouro”, os reversos da glória, da
fama, da beleza e da juventude são tratados sem disfarces em outro conto com
final acre e assustadoramente inevitável.
Em “A Árvore”, a “História número quatro”, a crueza humana trazida
pela vida adulta e pelo tempo consegue derrubar até a ternura e o amor
incondicional, em uma história que anuncia o enredo do clássico “Meu Pé de
Laranja Lima” (1968), do próprio autor, e dialoga com a obra “A árvore
generosa” (“The Giving Tree”), do escritor, desenhista e compositor americano
Shel Silverstein, publicada pela primeira vez nos Estados Unidos, em outubro de
1964.
Embora tantas vezes criticado por ser exagerado e melodramático, José
Mauro de Vasconcelos, mesmo recheando o livro com uma prosa poética singela,
apresenta um livro acre e pessimista.
Por isso, já ouvi quem impingisse ao autor a promoção – principalmente
por meio de “Coração de Vidro” –, de um autêntico “sadismo” contra a alma das
crianças. Em um tempo em que se
edulcoram os contos infantis, retirando toda graça e sentido pedagógico
historicamente construídos pela sabedoria popular e por autores magistrais –
Walt Disney já foi criticado por isso, mas diante das adaptações atuais de
alguns clássicos para crianças a condenação parece até injusta –, o livro de
Vasconcelos simplesmente conversa com o público infantojuvenil, moldando sua
sensibilidade para a vida adulta.
Não se trata de distribuir a desilusão e o desengano: “Coração de
Vidro” desperta a alma para compaixão e para ternura.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal
de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 19/4/2013
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