sábado, 4 de outubro de 2014

Em busca da ternura perdida (apontamentos sobre a obra de José Mauro de Vasconcelos)-II

(caio silveira ramos)

“Coração de Vidro” (1964) pode ser enquadrado dentre os livros infantojuvenis de José Mauro de Vasconcelos, embora eu esteja convencido que a literatura para crianças deva ser tratada como assunto de gente grande.  
Diferentemente da maioria dos autores presentes no mercado editorial infantojuvenil – dividido entre os que menosprezam o discernimento da criança e aqueles que agradam apenas ao adulto, seja pela aparência de suas publicações ou pelo conteúdo “edificante” de suas obras que muitas vezes não atinge os pequenos –, José Mauro narra suas histórias com a sabedoria que só os grandes autores têm: ele escreve para crianças valorizando sua inteligência e sensibilidade.   E se faz compreender sem enfado e com encanto pelos adultos.
Com o título do livro (declaradamente) retirado do verso “Estala, coração de vidro pintado!” do poema “Esta velha angústia,” (1934), escrito pelo heterônimo pessoano Álvaro de Campos, a obra, dividida em cinco partes, tem forma, conteúdo, desenhos (do próprio autor) e ilustrações (de Gioconda Uliana Campos) que remetem ao universo infantil. 
Na introdução (“Cenário: A Fazenda”), Vasconcelos contrapõe a beleza e a força natural do lugar ao poder de destruição do ser humano, expondo a ideia que vai nortear todo livro: “mas os homens estragavam tudo...”
Em “A Missa do Sol”, a “História número um”, ele trata das desventuras de um azulão engaiolado, que relembra, com inconformismo e tristeza, sua vida livre na fazenda.  A prudência – confundida com o medo –, representada pela passarinha Iracema, e o desejo de liberdade acima da fome, da sede e da própria vida marcam um conto cheio de melancolia, dor, mas ainda assim, coado pela ternura.
A “História número dois: O Aquário” narra a vida do peixinho vermelho Clóvis. Do açude da fazenda, passando por um grande tanque de uma loja, até o aquário de uma casa elegante, o presunçoso e egoísta Clóvis vê seu mundo desmoronando até ser tomado pela solidão e engolido pela indiferença humana.   Um conto cru e forte.
Na “História número três: O Cavalo de Ouro”, os reversos da glória, da fama, da beleza e da juventude são tratados sem disfarces em outro conto com final acre e assustadoramente inevitável.
Em “A Árvore”, a “História número quatro”, a crueza humana trazida pela vida adulta e pelo tempo consegue derrubar até a ternura e o amor incondicional, em uma história que anuncia o enredo do clássico “Meu Pé de Laranja Lima” (1968), do próprio autor, e dialoga com a obra “A árvore generosa” (“The Giving Tree”), do escritor, desenhista e compositor americano Shel Silverstein, publicada pela primeira vez nos Estados Unidos, em outubro de 1964.
Embora tantas vezes criticado por ser exagerado e melodramático, José Mauro de Vasconcelos, mesmo recheando o livro com uma prosa poética singela, apresenta um livro acre e pessimista.  Por isso, já ouvi quem impingisse ao autor a promoção – principalmente por meio de “Coração de Vidro” –, de um autêntico “sadismo” contra a alma das crianças.    Em um tempo em que se edulcoram os contos infantis, retirando toda graça e sentido pedagógico historicamente construídos pela sabedoria popular e por autores magistrais – Walt Disney já foi criticado por isso, mas diante das adaptações atuais de alguns clássicos para crianças a condenação parece até injusta –, o livro de Vasconcelos simplesmente conversa com o público infantojuvenil, moldando sua sensibilidade para a vida adulta.  
Não se trata de distribuir a desilusão e o desengano: “Coração de Vidro” desperta a alma para compaixão e para ternura.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba 
Publicado no Jornal de Piracicaba em 19/4/2013

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