(caio silveira
ramos)
A campainha tocava. Ao abrir a porta de entrada, dona
Antoninha estava lá, sempre do mesmo jeito: cobrindo o corpo gorducho e
baixote, o vestido estampado com flores pequenas, de comprimento na altura da
canela, mangas curtas e cinto do mesmo tecido; nos pés, as sandálias de fivelas
miúdas; preso eternamente num coque perfeito, o cabelo crespo e grisalho (nunca
descobri se era longo ou curto). E os olhos serenos envidraçado pelos
óculos de aro dourado e ovalado. E o sorriso negro e tímido. No
inverno, o figurino só ganhava uma blusa de lã fina sobre o vestido e um par de
meias de seda protegendo os pés nas mesmas sandálias de fivelas miúdas.
Simples. Dona Antoninha era assim.
Na década de 1940, a jovem Antoninha, que tinha feito curso de
alta-costura na capital, trabalhava em uma pensão da rua Prudente quando
conheceu a Vó Jandyra, que morava numa casa vizinha. Dali em diante, a moça
passou a ser a costureira oficial da família, tanto que fez o vestido de
casamento da Jandyrinha, com quem gostava de conversar sobre música e
cinema. Muito antes dos aparelhos de videocassete e de DVD,
Antoninha conhecia os enredos dos grandes clássicos do cinema e a ficha
completa de centenas de “fitas”. Fã de Alfred Hitchcock, tinha
assistido várias vezes a todos os seus filmes e sabia apontar o número de
momentos e lugares em que o diretor fazia aparições relâmpagos em suas
histórias.
Conheci dona Antoninha na década de 1970: chamada especialmente
para fazer alguma roupa para uma ocasião especial, um guarda-pó para os
professores da casa ou ajustar calças e vestidos que o tempo ia tornando curtos
ou estreitos, ela aparecia pela manhã, tomava café, abria a máquina de costura
quase na porta da copa para aproveitar a luz do dia e em silêncio começava seu
trabalho minucioso e caprichado. Desenhava seus projetos de acordo com a
vontade do freguês, mas, com a genialidade de um mestre, sabia deixar sua
marca, seu estilo inconfundível. Depois recortava os modelos, prendia os
moldes com dezenas de alfinetes, marcava e cortava o tecido, costurava na
máquina e à mão, e por fim passava a ferro com extrema delicadeza os panos mais
rebeldes. Na hora do almoço, assumia seu posto na cabeceira da mesa e
comia quieta e elegante, acompanhando com seu sorriso discreto e sincero nossas
conversas animadas. E se a puxávamos para qualquer assunto,
participava timidamente, quase como se não quisesse atrapalhar.
Terminada a refeição, apoiava delicadamente o queixo nas mãos entrelaçadas,
ouvia um pouco mais as conversas e depois pedia licença discretamente para
voltar ao trabalho. Se alguma notícia interessante passasse no
telejornal, ela espiava rapidamente e só se sentava no sofá da sala (e ainda
assim, sem abandonar a costura) se algum de nós insistisse: “venha ver, dona
Antoninha!”. Mas logo estava ela de novo na máquina, quieta e incansável,
às voltas com vestidos de formatura ou aumentando as barras das minhas
calças. E assim seguia ela a tarde toda.
Nos dias em que meus amigos apareciam para jogar bola no pátio,
eu pedia que eles chutassem com cuidado a bola no gol improvisado que ficava
perto da porta da copa onde ela costurava. Mas mesmo quando a empolgação
tomava conta da final de um campeonato caseiro e a bola pipocava em cima da
máquina de costura, ela nunca levantava a voz. Sorria, aceitava
nossas desculpas encabuladas e retornava ao seu trabalho. E nós, lá fora,
voltávamos a ouvir a torcida imaginária lamentando o gol perdido.
Entre seus pequenos prazeres revelados, dona Antoninha adorava
pão com mortadela e, para agradá-la, eu pedia dinheiro para minha mãe e corria
até a padaria comprar o lanche da tarde. Sentada no seu lugar
à mesa, ela sorria agradecida, comia quietinha e por fim repetia o gesto do
queixo apoiado nas mãos entrelaçadas. Antes de pegar seu ônibus e
voltar para casa, ainda sem abandonar a costura, ela acompanhava alguma novela
sentada na ponta de uma poltrona da sala. Algumas vezes a vi
discretamente empolgada, principalmente quando passava alguma novela ou minissérie
inspirada num romance trazido por Chico Xavier. Sem qualquer tipo
de proselitismo, dona Antoninha era espírita e também tinha muita curiosidade
por assuntos relacionados a outros mundos e seres. Nas poucas
conversas que tivemos enquanto eu catava com um imã os alfinetes caídos no
chão– fico impressionado hoje com o respeito que ela tinha com as opiniões de
uma criança –, o assunto quase sempre eram os planetas e possibilidade de vida
extraterreste. Quando demonstrei interesse pelo livro “Eram os deuses
astronautas?”, de Erich von Däniken, ela disse que tinha um exemplar e me
emprestaria.
Li aquele livro com atenção e muito cuidado, e devolvi logo em
seguida, como se tivesse medo que algo acontecesse com ele. Hoje eu me
dou conta que aquela mulher genial, que morou durante toda vida na casa de um
irmão ou de uma sobrinha, mesmo tendo um domínio incomum sobre os sentidos da
moda e da estética, era de uma simplicidade franciscana. E talvez aquele livro
fosse um dos seus poucos pertences.
Mas ela não precisava de muito para viver: dentro dela, um mundo
de harmonia, beleza e criatividade a preenchia e a tornava completa. E ela
vivia da beleza que emprestava ao mundo.
Um mundo não. Muitos, muitos mundos.
***
Conheço outra pessoa que também vive de beleza e só precisa dela
para viver. Contrastando com o doce sorriso encabulado da
costureira Antoninha, que era descendente de africanos, o sorriso da
bibliotecária e fotógrafa Nogata é fácil e escancarado, o que intriga quem tem
na cabeça o estereótipo de uma filha de japoneses. Nogata é alta e rija, fala
com as mãos, com os braços, com o corpo todo. Emotiva, enche os
olhos d’água quando se depara com uma frase que a comove numa conversa ou num
livro. Fotógrafa de sensações escondidas e de miudezas desencantadas, ela sabe
metamorfosear lagartas sem que precisem virar borboletas. Em suas mãos
(ou pelos seus olhos?) feras e feiúras se rendem e se embriagam de
belezas.
Nas suas infinitas viagens, de Istambul a um riacho no interior
do Pará, suas malas são minúsculas ou enfeitiçadas: ela parece não levar nada
além da câmera, do sorriso e dos olhos puxados, que deixam o mundo marejar e a
água escoar pelos cantos. Em seus caminhos, além dos bichos miúdos,
ela sai colhendo outros olhos e sorrisos, e depois manda cartas, enviando as
fotos para seus donos. Ou volta para o mesmo lugar e coloca outro
sorriso nos rostos envelhecidos.
Com receio de que as pessoas se percam de suas almas emolduradas,
ela agora arranjou uma máquina de foto instantânea. E lá no meio do mato,
numa casa esquecida pelo tempo, ela registra a pose e na mesma hora entrega seu
feitiço para o fotografado. E tem vontade de fotografar de novo o novo sorriso
que se encanta com o velho sorriso estampado na imagem de papel. Pelo
mundo, suas fotos se espalham, escorrendo anonimamente a beleza
alheia.
Sou feito dos seres que passam e se aderem na minha vida.
Tal qual um espantalho construído de retalhos de almas, vou me compondo de
pessoas que conheci na infância, na adolescência, na vida-até-agora: são
rostos, sorrisos, dores, amores, sentidos que vou acumulando e
inesquecendo.
Quando conheci Nogata achei que ela fosse feita assim
também. Acreditei que fotografasse pessoas, velhas almas, passarinhos e
insetos miúdos para se compor. Mas não: na verdade, ela sai pelo mundo
fazendo justamente o contrário: Nogata vai distribuindo sua alma, sua visão de
beleza que nem mesmos os próprios fotografados conseguem enxergar em si próprios.
Nogata às vezes enche os olhos de outras águas quando relembra
tristezas da sua infância. Sua mãe se foi quando ela ainda era
criança de colo e, como não aceitasse leite, uma babá lhe dava mamadeiras de
refrigerante de laranja, o que (segundo ela mesmo diz risonhamente) teria
desnorteado seus miolos. O fato é que na casa de sua infância, além
de uma babá com – ela sim – miolos desnorteados, havia às vezes grito e
discussão. Nesses momentos, a pequena Nogata se refugiava dentro de uma
máquina de costura, dessas que, quando fechadas, parecem um armário quadrado e
baixo. Ela entrava, puxava a porta pelo lado de dentro e se sentava
sobre o pedal da máquina. Então começava a se balançar lentamente, o barulho
ronronante do pedal silenciando o mundo. Até que, na escuridão embalada e
protetora, ela adormecia.
Imagino dona Antoninha chegando para costurar: ela abriria a
porta daquela máquina e fingiria não ver a pequena Nogata dormindo no pedal, só
para não interromper seu sono gostoso. Montada a máquina, dona
Antoninha começaria a tecer suas belezas e colocaria docemente seus pés nos
cantos do pedal para movimentar as engrenagens e os novos sonhos de
Nogata.
Acordando no futuro, a menina se maravilharia com as sandálias
de fivelas miúdas da costureira embalando seu berço de pedal.
E quando dona Antoninha se abaixasse para mostrar o vestido
pronto para sua nova amiga, Nogata fotografaria seu sorriso negro e
tímido.
E assim se revelaria a beleza.
Ilustração:
Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicados no Jornal de Piracicaba em 3/5/2013 e 17/5/2014
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