domingo, 5 de outubro de 2014

Costuras e balanços

(caio silveira ramos)

A campainha tocava.  Ao abrir a porta de entrada, dona Antoninha estava lá, sempre do mesmo jeito: cobrindo o corpo gorducho e baixote, o vestido estampado com flores pequenas, de comprimento na altura da canela, mangas curtas e cinto do mesmo tecido; nos pés, as sandálias de fivelas miúdas; preso eternamente num coque perfeito, o cabelo crespo e grisalho (nunca descobri se era longo ou curto).  E os olhos serenos envidraçado pelos óculos de aro dourado e ovalado. E o sorriso negro e tímido.   No inverno, o figurino só ganhava uma blusa de lã fina sobre o vestido e um par de meias de seda protegendo os pés nas mesmas sandálias de fivelas miúdas.  Simples. Dona Antoninha era assim.
Na década de 1940, a jovem Antoninha, que tinha feito curso de alta-costura na capital, trabalhava em uma pensão da rua Prudente quando conheceu a Vó Jandyra, que morava numa casa vizinha. Dali em diante, a moça passou a ser a costureira oficial da família, tanto que fez o vestido de casamento da Jandyrinha, com quem gostava de conversar sobre música e cinema.    Muito antes dos aparelhos de videocassete e de DVD, Antoninha conhecia os enredos dos grandes clássicos do cinema e a ficha completa de centenas de “fitas”.    Fã de Alfred Hitchcock, tinha assistido várias vezes a todos os seus filmes e sabia apontar o número de momentos e lugares em que o diretor fazia aparições relâmpagos em suas histórias.
Conheci dona Antoninha na década de 1970: chamada especialmente para fazer alguma roupa para uma ocasião especial, um guarda-pó para os professores da casa ou ajustar calças e vestidos que o tempo ia tornando curtos ou estreitos, ela aparecia pela manhã, tomava café, abria a máquina de costura quase na porta da copa para aproveitar a luz do dia e em silêncio começava seu trabalho minucioso e caprichado.  Desenhava seus projetos de acordo com a vontade do freguês, mas, com a genialidade de um mestre, sabia deixar sua marca, seu estilo inconfundível.  Depois recortava os modelos, prendia os moldes com dezenas de alfinetes, marcava e cortava o tecido, costurava na máquina e à mão, e por fim passava a ferro com extrema delicadeza os panos mais rebeldes.  Na hora do almoço, assumia seu posto na cabeceira da mesa e comia quieta e elegante, acompanhando com seu sorriso discreto e sincero nossas conversas animadas.   E se a puxávamos para qualquer assunto, participava timidamente, quase como se não quisesse atrapalhar.   Terminada a refeição, apoiava delicadamente o queixo nas mãos entrelaçadas, ouvia um pouco mais as conversas e depois pedia licença discretamente para voltar ao trabalho.  Se alguma notícia interessante passasse no telejornal, ela espiava rapidamente e só se sentava no sofá da sala (e ainda assim, sem abandonar a costura) se algum de nós insistisse: “venha ver, dona Antoninha!”.  Mas logo estava ela de novo na máquina, quieta e incansável, às voltas com vestidos de formatura ou aumentando as barras das minhas calças.   E assim seguia ela a tarde toda.
Nos dias em que meus amigos apareciam para jogar bola no pátio, eu pedia que eles chutassem com cuidado a bola no gol improvisado que ficava perto da porta da copa onde ela costurava.  Mas mesmo quando a empolgação tomava conta da final de um campeonato caseiro e a bola pipocava em cima da máquina de costura, ela nunca levantava a voz.   Sorria, aceitava nossas desculpas encabuladas e retornava ao seu trabalho.  E nós, lá fora, voltávamos a ouvir a torcida imaginária lamentando o gol perdido.
Entre seus pequenos prazeres revelados, dona Antoninha adorava pão com mortadela e, para agradá-la, eu pedia dinheiro para minha mãe e corria até a padaria comprar o lanche da tarde.    Sentada no seu lugar à mesa, ela sorria agradecida, comia quietinha e por fim repetia o gesto do queixo apoiado nas mãos entrelaçadas.   Antes de pegar seu ônibus e voltar para casa, ainda sem abandonar a costura, ela acompanhava alguma novela sentada na ponta de uma poltrona da sala.   Algumas vezes a vi discretamente empolgada, principalmente quando passava alguma novela ou minissérie inspirada num romance trazido por Chico Xavier.   Sem qualquer tipo de proselitismo, dona Antoninha era espírita e também tinha muita curiosidade por assuntos relacionados a outros mundos e seres.   Nas poucas conversas que tivemos enquanto eu catava com um imã os alfinetes caídos no chão– fico impressionado hoje com o respeito que ela tinha com as opiniões de uma criança –, o assunto quase sempre eram os planetas e possibilidade de vida extraterreste. Quando demonstrei interesse pelo livro “Eram os deuses astronautas?”, de Erich von Däniken, ela disse que tinha um exemplar e me emprestaria.
Li aquele livro com atenção e muito cuidado, e devolvi logo em seguida, como se tivesse medo que algo acontecesse com ele.  Hoje eu me dou conta que aquela mulher genial, que morou durante toda vida na casa de um irmão ou de uma sobrinha, mesmo tendo um domínio incomum sobre os sentidos da moda e da estética, era de uma simplicidade franciscana. E talvez aquele livro fosse um dos seus poucos pertences.  
Mas ela não precisava de muito para viver: dentro dela, um mundo de harmonia, beleza e criatividade a preenchia e a tornava completa. E ela vivia da beleza que emprestava ao mundo.
Um mundo não. Muitos, muitos mundos.
                                              
***

Conheço outra pessoa que também vive de beleza e só precisa dela para viver.   Contrastando com o doce sorriso encabulado da costureira Antoninha, que era descendente de africanos, o sorriso da bibliotecária e fotógrafa Nogata é fácil e escancarado, o que intriga quem tem na cabeça o estereótipo de uma filha de japoneses. Nogata é alta e rija, fala com as mãos, com os braços, com o corpo todo.   Emotiva, enche os olhos d’água quando se depara com uma frase que a comove numa conversa ou num livro. Fotógrafa de sensações escondidas e de miudezas desencantadas, ela sabe metamorfosear lagartas sem que precisem virar borboletas.  Em suas mãos (ou pelos seus olhos?) feras e feiúras se rendem e se embriagam de belezas. 
Nas suas infinitas viagens, de Istambul a um riacho no interior do Pará, suas malas são minúsculas ou enfeitiçadas: ela parece não levar nada além da câmera, do sorriso e dos olhos puxados, que deixam o mundo marejar e a água escoar pelos cantos.   Em seus caminhos, além dos bichos miúdos, ela sai colhendo outros olhos e sorrisos, e depois manda cartas, enviando as fotos para seus donos.   Ou volta para o mesmo lugar e coloca outro sorriso nos rostos envelhecidos.  
Com receio de que as pessoas se percam de suas almas emolduradas, ela agora arranjou uma máquina de foto instantânea.  E lá no meio do mato, numa casa esquecida pelo tempo, ela registra a pose e na mesma hora entrega seu feitiço para o fotografado. E tem vontade de fotografar de novo o novo sorriso que se encanta com o velho sorriso estampado na imagem de papel.  Pelo mundo, suas fotos se espalham, escorrendo anonimamente a beleza alheia.  
Sou feito dos seres que passam e se aderem na minha vida.  Tal qual um espantalho construído de retalhos de almas, vou me compondo de pessoas que conheci na infância, na adolescência, na vida-até-agora: são rostos, sorrisos, dores, amores, sentidos que vou acumulando e inesquecendo. 
Quando conheci Nogata achei que ela fosse feita assim também.  Acreditei que fotografasse pessoas, velhas almas, passarinhos e insetos miúdos para se compor.  Mas não: na verdade, ela sai pelo mundo fazendo justamente o contrário: Nogata vai distribuindo sua alma, sua visão de beleza que nem mesmos os próprios fotografados conseguem enxergar em si próprios.
Nogata às vezes enche os olhos de outras águas quando relembra tristezas da sua infância.   Sua mãe se foi quando ela ainda era criança de colo e, como não aceitasse leite, uma babá lhe dava mamadeiras de refrigerante de laranja, o que (segundo ela mesmo diz risonhamente) teria desnorteado seus miolos.   O fato é que na casa de sua infância, além de uma babá com – ela sim – miolos desnorteados, havia às vezes grito e discussão.  Nesses momentos, a pequena Nogata se refugiava dentro de uma máquina de costura, dessas que, quando fechadas, parecem um armário quadrado e baixo.   Ela entrava, puxava a porta pelo lado de dentro e se sentava sobre o pedal da máquina. Então começava a se balançar lentamente, o barulho ronronante do pedal silenciando o mundo.  Até que, na escuridão embalada e protetora, ela adormecia.

Imagino dona Antoninha chegando para costurar: ela abriria a porta daquela máquina e fingiria não ver a pequena Nogata dormindo no pedal, só para não interromper seu sono gostoso.   Montada a máquina, dona Antoninha começaria a tecer suas belezas e colocaria docemente seus pés nos cantos do pedal para movimentar as engrenagens e os novos sonhos de Nogata. 
Acordando no futuro, a menina se maravilharia com as sandálias de fivelas miúdas da costureira embalando seu berço de pedal.  
E quando dona Antoninha se abaixasse para mostrar o vestido pronto para sua nova amiga, Nogata fotografaria seu sorriso negro e tímido. 
E assim se revelaria a beleza.

 Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicados no Jornal de Piracicaba em 3/5/2013 e 17/5/2014 

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