(caio
silveira ramos)
Aqueles que
foram alunos do professor Algemiro nas décadas de 1970 e 1980 não tinham
dúvidas: ele era palmeirense. Não que
fosse fanático ou algum tipo de torcedor desagradável ou intransigente. Longe disso.
Suas provocações risonhas, seus comentários graciosos no início das
aulas, os exemplos que explicitavam as lições de gramática e as amistosas
conversas com os alunos durante os intervalos (ou até mesmo na rua, em um
encontro causal) tinham a finalidade de entreter e principalmente tornar mais
fáceis e inesquecíveis os intrincados caminhos da Língua Portuguesa. Mas o que quase ninguém sabe é que o
professor Algemiro era palmeirense apenas por causa do seu filho mais novo. Se é que de fato torceu pelo Palmeiras algum
dia.
Durante nossas
intermináveis conversas ele dizia que, quando menino, tinha sido são-paulino,
muito provavelmente porque na década de 1940, Leônidas da Silva, o “Diamante
Negro”, jogara no São Paulo e fora cinco vezes campeão paulista. Para um garoto criado em Itu, mas que tinha
passado boa parte da infância e da adolescência confinado no Seminário de
Pirapora do Bom Jesus, as bicicletas vitoriosas de Leônidas deviam ser
irresistíveis. E faziam o pensamento
voar mais alto que as pipas empinadas nos intervalos dos estudos.
Quando migrou para
Capital (e assim que a fome diminuiu um pouco graças ao trabalho de bancário),
entre os campeonatos de futebol de várzea, a Faculdade de Letras (e por um
período também a de Direito) e os estudos profundos nos finais de semana na
Biblioteca Mário de Andrade, o jovem Miro foi convidado para treinar e disputar
corridas de longa distância justamente pelo São Paulo F.C., que nessa época
tinha o Canindé como estádio.
Acontece que
Miro não era de briga (pelo menos das brigas que não valiam a pena) e nunca se
tornou um torcedor fanático: o que ele gostava era de futebol, qualquer que
fosse o time ou o jogo.
Durante nossos
passeios a pé, sempre longos e cheios de conversa, ele quase sempre parava à
beira de um campinho qualquer e ficava olhando o jogo por um bom tempo. Se tivesse um alambrado (como no campo em
frente à ESALQ), ele apoiava os dedos na grade e comentava comigo as jogadas,
mesmo que fosse uma pelada de “os com camisa” contra “os sem camisa”. Talvez se imaginasse jogando, relembrando
seus tempos de goleiro no terrão do seminário ou nos campos de várzea do
campeonato bancário.
Ele não torcia:
gostava de ver os gols, as defesas, os dribles. Em época de Copa do Mundo, se já estivesse
em férias, assistia a todas as partidas possíveis, alegrando-se com os times
que tivessem um grande goleiro ou jogassem bonito, sem violência e
ofensivamente. Mas ele não sofria, não
gritava, nem se deixava entusiasmar muito pela Seleção Brasileira: consciente
dos danos irreversíveis da ditadura militar, temia o ufanismo inconsequente e
vazio. Da várzea ao Maracanã, a vitória
não importava. Importava era a beleza daquele bailado todo.
E contra
qualquer ditadura, ele subverteu a “ordem” que determina que os filhos devem
torcer pelo clube de seus pais: pelo filho caçula, passou a se dizer torcedor
do time que um garoto de quatro anos escolheu (e se apaixonou) livremente. Sem
despertar qualquer suspeita do motivo, para os das ruas, das escolas, para o
mundo, ele torcia para o Palmeiras, justamente no período em que o time ficou
mais de dezesseis anos sem título. Para
que o filho caçula não sofresse sozinho, ele se fez palmeirense até quase
acreditar que torcia de fato.
Pelo filho mais
novo, ele vestiu o coração de verde e branco e o expôs ternamente fora do
peito.
***
Mas em casa, a
história era outra: o Palmeiras do filho não entusiasmava o pai, que preferia
optar pelo belo e pela alegria. No
final da década de 1970 e começo da de 1980, foi o Corinthians da Democracia,
comandado pelo doutor Sócrates, quem encheu os olhos do Miro. Não eram apenas a criatividade do time em
campo e o toque mágico de calcanhar de Sócrates: o que fascinava era a postura
sábia daquele jogador formado em uma das maiores faculdades de Medicina do
País, que discutia sem dificuldade sobre qualquer assunto – inclusive sobre
leituras diversas –, se posicionava de maneira corajosa politicamente em época
de ditadura e ainda dizia, mesmo recebendo ofertas milionárias de times
estrangeiros, que se o Brasil voltasse à democracia, ele não aceitaria jogar no
exterior. O filho sabia que o time
jogava solto e bonito, e que o médico-jogador além de inteligente era um craque
de bola, mas a paixão falava mais alto e o menino preferia torcer contra o
maior rival do seu esforçado time. Ciente
de todo o sofrimento do filho, o pai, fora de casa, se revela um anticorintiano
irônico, embora não deixasse de enaltecer o talento de Sócrates e sua luta pela
democracia.
Como as eleições
diretas para Presidente da República demoraram, o “Doutor” foi jogar no
Fiorentina da Itália e o olhar de seu Miro só voltou a se encantar com um time
quando Telê Santana transformou o São Paulo em uma fabulosa orquestra no começo
da década de 1990. O filho do Miro
admirava Telê desde 1979, quando o mestre montou um grande Palmeiras e por isso
seguiu para Seleção Brasileira. E
dirigindo a Seleção, mesmo sem títulos, Santana construiu duas inesquecíveis
equipes para as Copas do Mundo de 1982 e 1986.
Muito bom, muito
bem, mas daí a torcer para o São Paulo anos depois já era outra história. Mas se isso era impossível para o filho, para
o Miro não era nenhum problema, já que no São Paulo, Telê encontrou os títulos
que lhe faltavam e brindou o time com um futebol vistoso, ofensivo, alegre, que
deixava a violência de lado. Seu Miro,
que já tinha um passado tricolor, mais uma vez se encantou, principalmente
quando soube que Telê Santana tinha o mesmo cuidado com os times da base do São
Paulo. E ainda exigia que os meninos se
esforçassem na escola, se aprontando para um mundo maior que o do futebol. Telê
preparava times para a vida e para beleza.
Mas nem só a
beleza do jogo enchia os olhos do Miro.
Os simples encantos de uma partida singela o recheavam de alegria. Por isso, eu e ele subimos tantas vezes a rua
Moraes Barros para ver o XV jogar no Barão de Serra Negra. Não íamos apenas para ver o jogo (mesmo
porque durante um bom tempo o Nhô Quim não apresentava um futebol nada
vistoso): nosso prazer era a conversa no caminho, a sensação de entrar no
estádio, sentar na geral, tomar sorvete e compartilhar um cone de jornal cheio
de “casulos” de amendoim. Ele “estendia”
o cone e sob nossos pés espalhava as vagens todas em cima da toalha
improvisada. Depois ia descascando uma a uma, comendo sem tirar os olhos do
jogo ou me dando os “casulinhos” já abertos para que eu não perdesse um lance
no campo ou um amendoim torrado na boca.
Até hoje, só
fechando os olhos, consigo sentir novamente o arrepio emocionado de entrar em um
estádio à noite e ver surgir de repente a grama iluminada, resplandecendo todos
os verdes possíveis e inimaginados.
E ainda de olhos
fechados, sentir o arrepio de reencontrar os olhos do pai resplandecendo todos
os seus verdes. E iluminando a
escuridão.
***
Mas se não era
por causa do pai, por que o filho se tornou palmeirense?
Meu grande amigo
Nando Boscariol foi quem fortaleceu meu sangue alviverde: ainda muito pequenos,
brincávamos de “gol a gol” e, como ele era são-paulino, para haver alguma
disputa, eu me tornei um palmeirense doente.
Depois, quando o próprio Nando rejeitou um pôster do “Palmeiras Campeão
Paulista de 1976”, que veio como prêmio de um álbum de figurinhas da “Copa
Brasil”, eu grudei o time na parede, decorei como tabuada a escalação e passei
a acompanhar os jogos pelo rádio.
Mas antes, antes
disso, eu já torcia pelo Palmeiras e aí é que está o mistério: muito pequeno,
quando dei por mim, eu já era palmeirense, sem que houvesse ninguém na família
que torcesse ou procurasse fazer a minha cabeça. O que sei é que quando eu e meu pai
escolhemos os nossos times de futebol de botão, ele optou pelo São Paulo e eu,
pelo Palmeiras.
Na escalação dos
meus botões pode estar a solução do mistério: eles já vinham com o rosto e o
nome dos jogadores do Palmeiras da época, um time tão fabuloso que, por dar uma verdadeira aula de futebol,
era chamado de “Segunda Academia” em homenagem à “Primeira Academia”
(apelido do vitorioso Palmeiras da
década de 1960).
A minha escolha
por aquele time de botão revela que enquanto eu arriscava minhas primeiras
engatinhadas, a “Segunda Academia” deitava e rolava pelos campos do País, e sua
escalação, que incluía Leão, Luís Pereira, Leivinha e Ademir da Guia, de tanto
pular de boca em boca (até na dos não torcedores do time) acabou se abrigando
amorosamente dentro da minha cabeça. O
problema é que o Palmeiras, depois de sua fase acadêmica, ficou sem títulos de
1977 até o segundo semestre de 1993. Ou seja: durante toda minha vida escolar –
do pré-primário até o último ano da faculdade –, meu time só foi campeão no
final do último período. Durante muitos
daqueles anos, o camisa 7 Jorginho Putinatti, com suas jogadas inacreditáveis –
que incluem vários gols olímpicos e um inesquecível gol “tabelado” com o
árbitro José de Assis Aragão –, manteve acesa uma chama verde e alegre que
nunca permitiu que eu sequer imaginasse abandonar meu time. E também, durante todos aqueles anos, em meus
sonhos, transformei Ademir da Guia, que já era Divino, em um Dom Sebastião de
armadura verde, que viria com seu ritmo líquido (revelado por João Cabral de
Mello Neto na mais bela poesia sobre futebol já escrita) para resgatar todas as
glórias do meu time e afastar qualquer tristeza. Mas Ademir nunca mais voltou a
jogar.
Para não me
deixar sozinho durante essa dura fase, meu pai se dizia palmeirense. Solidário-fingidor, ele dividia comigo,
pelo menos em público, as frustrações, as amarguras e as gozações. E como
grande goleiro que era, rebatia todas elas com bom-humor e muita graça.
Anos depois,
quando ele já havia partido, comecei a me lembrar de algumas de suas conversas
sobre futebol e fui rever suas fotos antigas: na infância ou na juventude, lá
estava ele de goleiro. Seus uniformes,
suas defesas, suas poses nos retratos dos times “em posição” (as famosas
fotografias dos “em pé e agachados”) foram revelando o segredo que me
acompanha.
***
É difícil tentar
descobrir como um menino “nasce” torcendo por um time que não é o de seu pai. E
como um pai passa a torcer (ou finge torcer) pelo time escolhido por seu filho só
para que seu menino não sofra sozinho nas derrotas e nos tempos difíceis. Será que o meu “solidário fingidor”, tal qual
o poeta Pessoa, fingia tão completamente que chegava a fingir ser palmeirense o
palmeirense que de fato era?
Quando
literalmente comecei a dar tratos à bola, fiquei fascinado por saber que meu
pai tinha sido goleiro: lá pelas décadas de 1940 e 1950, tanto no seminário,
quanto nos campeonatos bancários da várzea, ele fechava o gol. Diante da minha decisão de tentar fechar o
gol também, seu Miro me arranjou joelheiras.
Como eu nunca tinha visto Emerson Leão com aquele acessório, achei
engraçado, mas meu pai explicou que além do piso do pátio de casa ser feito de
um duro mosaico de pedras vermelhas (salpicado de amarelas e azuis), um antigo
goleiro do meu Palmeiras, chamado Oberdan Cattani, usava joelheiras. E com a ajuda delas, ele voava no ar sem medo
e podia fazer defesas inacreditáveis com suas mãos gigantescas.
E Oberdan fechava
o gol mais que qualquer um. E Oberdan nem
despenteava o cabelo, como um super-herói de cinema. E Oberdan surgia triunfal no meio do ataque
adversário para defender as bolas mais perigosas com apenas uma das mãos.
Passei a usar as
joelheiras nos “nossos treinos”. Quando
meu pai chutava uma inesquecível bola de capotão verde e branca número 4, eu me
atirava no ar sem medo como Oberdan Cattani.
Muitas e muitas
vezes meu pai falou do velho goleiro com admiração. E muitas e muitas vezes,
olhando as fotos antigas de seu Miro, comecei a perceber que as defesas de
Oberdan Cattani guardavam a verdadeira razão de meu pai ter ido parar (e
saltar) debaixo das traves: exceto pela estatura e pela ausência do bigode (que
por causa do seminário ele nunca usou), nas suas poses de goleiro, nas suas
defesas, nos seus uniformes e nas suas joelheiras, meu pai se espelhava no seu
super-herói que tinha um “P” estampado no centro do peito e que voava sem
despentear o cabelo nas fotografias de jornais e revistas, nas figurinhas de
bala ou nas transmissões apaixonadas do rádio.
E se meu pai se
tornou são-paulino por causa dos títulos nascidos das bicicletas de Leônidas da
Silva, era no invencível “Muralha Verde” que ele se transformava para defender
as traves infinitas. Talvez uma bola
espalmada corajosamente lá no campo do seminário tenha se transformado em sonho
e, atravessando gramados, cidades e tempos, acabou mergulhando no sono
tranquilo do menino adormecido em um berço com colchão de palha. Talvez seja isso: mais do que ter nascido
durante o reinado da “Segunda Academia”, acho que me tornei palmeirense devido
a um sonho compartilhado entre dois garotos de tempos diferentes.
E por causa
daquele sonho, em 2010, decidi conhecer Oberdan Cattani. Descobri o número do
seu telefone e conversei com o próprio, que me indicou os caminhos caso eu
fosse de carro ou de ônibus. E numa
manhã nublada de sábado, de mãos dadas com meu filho ainda tão pequeno, fui
recebido por aquele homem de 91 anos em uma casa verde e branca no Bairro da
Pompéia. Percebi que Oberdan devia
receber muitas daquelas visitas, principalmente de filhos já barbados levando
pela mão seus velhos pais palestrinos, todos fãs do “Muralha”. E todos mais
novos que ele.
E casa adentro,
Oberdan nos levou a uma sala repleta de troféus, camisas, flâmulas, fotos,
revistas, recortes de jornal, diplomas e honrarias. E contou histórias. E falou sobre times,
amigos, adversários, injustiças e defesas. E falou sobre seu amor pelo Palestra
Itália e pelo Palmeiras, na verdade um só time que a guerra fez mudar de nome e
a dureza do prélio o tornou campeão no dia em que Oberdan e seus companheiros
surgiram imponentes no Pacaembu carregando a bandeira do Brasil. Mas mudando o caminho da visita, o goleiro
abriu o coração e o guarda-roupa do seu quarto para mostrar um singelo memorial
com retratos e outras lembranças da esposa desesperadamente amada. Definitivamente, Oberdan era um homem
apaixonado.
Antes de partir,
tiramos fotos, ele abençoou meu filho pela vida e pelos campos, e espalmou suas
mãos de colosso para que o pequeno comparasse com as suas. E quando as mãos espalmadas do gigante e do
menino se encontraram, o milagre se fez: através do meu filho, meu pai
finalmente conheceu seu ídolo de infância.
Pelo super-herói que inspirou os voos de meu pai, meu filho conheceu um
pouco de seu avô.
Deixamos
Oberdan, sua casa e suas paixões, e saímos pela manhã nublada de sábado: meu
filho saltitando na calçada, “treinando quedas de goleiro” (como ele mesmo
diz), se jogando no ar para defender bolas imaginárias. Numa dessas defesas, a barreira de nuvens
falhou e ele (ou terá sido meu pai-menino lá no Seminário de Pirapora?)
espalmou corajosamente o sol, que subiu, subiu, e foi se perder no escanteio do
céu.
E a manhã de
sábado enfim se ensolarou.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 7 e 21/2 e 7 e 21/3/2014
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