sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Prazer e humildade

(caio silveira ramos)

Vários livros marcaram a minha vida desde a infância.  Saindo da adolescência, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e “Angústia”, de Graciliano Ramos, mudaram minha forma de ver o mundo.  Já adulto, “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, me fez redescobrir o sentido da beleza.  Agora, uma nova leitura altera novamente os rumos da minha vida: depois de quase dois anos, terminei “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes.
Pode ser muito tempo para uma leitura, mas eu tenho minhas desculpas: a obra é composta de dois robustos volumes: “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, com 736 páginas, e “O Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha”, com 856, embora se possa “descontar” da publicação da Editora 34 (com a espetacular tradução de Sérgio Molina), além das gravuras antológicas de Gustave Doré, o texto original em castelhano no pé de cada página. 
Em minha defesa posso dizer que li cuidadosamente, além de toda história, as apresentações, os prólogos e todas as notas explicativas, que são profundamente esclarecedoras.  Também posso dizer que, durante a leitura da obra de Cervantes, fiz inúmeras outras, por necessidade do trabalho e também por curiosidade e deleite.   Entre as várias traições, me enrosquei gostosamente nas palavras de escritores brilhantes como a canadense Alice Munro, o húngaro Imre Kertész e o romeno Matéi Visniec.   Mas sem qualquer pudor, sempre voltava para os braços da sem par Dulcinea del Toboso, a musa de Dom Quixote. 
A verdadeira razão da demora, no entanto, é o prazer.  O prazer de ler gozando cada palavra, cada história, cada genial artifício criado por Miguel de Cervantes, que inventou uma série de espelhos. De livros dentro de um livro que remete a várias outras obras e que volta sobre si próprio recriando-se. 
Tudo que gosto, quero que permaneça.   Exceto na leitura de livros policiais, quando desejo descobrir logo todos os mistérios, em tudo mais, abdico da rapidez em nome do prazer: cada instante tem que ser saboreado, sentido, sorvido e ressonhado.   Assim, a história de Dom Quixote e Sancho Pança foi ruminada sem pressa, para que aquele prazer não me escapasse pelo vão dos dedos e dos olhos.
Um colega que resolveu se aventurar também com Dom Quixote, disse que a obra seria melhor se o autor cortasse metade do livro e fosse direto ao ponto, contando a história sem (como ele chamou) “rodeios”.  Eu disse a ele que para esse tipo de leitura já existiam belíssimas adaptações feitas especialmente para o público infantil e juvenil: Monteiro Lobato, Orígenes Lessa e Ferreira Gullar são exemplos de escritores que contaram magistralmente as aventuras de Dom Quixote.    Mas o texto de Cervantes vai muito além da história.
É o prazer se derramando lentamente em forma de palavra escrita.
        
***

O primeiro livro da obra, “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, foi lançado em 1605 e rapidamente – o que é espantoso para aquela época – se tornou um grande sucesso: passados apenas alguns anos, traduções já eram publicadas na Inglaterra e na França, e até edições clandestinas podiam ser encontradas.  Os personagens e as situações criadas por Miguel de Cervantes Saavedra entraram de tal forma no imaginário do mundo – e aí permanecem até hoje de modo tão familiar –, que acabamos nos acostumando. E nem nos damos mais conta da grandeza da obra. 
De qualquer forma, se por um lado as figuras de Dom Quixote e Sancho Pança se tornaram icônicas muito por causa dos quadros e gravuras de artistas como Salvador Dali, Pablo Picasso, Cândido Portinari e principalmente Gustave Doré, não podemos deixar de lembrar que foram as palavras de Cervantes que inspiraram aquelas criações.   E que as histórias e as personagens criadas por aquelas palavras se tornaram muito populares bem antes do nascimento daqueles artistas: há relatos de que poucos anos após a publicação do primeiro livro, seus personagens já apareciam em bailes de máscaras, inclusive na “jovem” América.
A popularidade de “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha” foi tamanha que, quando Miguel de Cervantes lançou o segundo livro com as novas aventuras do personagem, em 1615 (“O Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha”), já circulava pela Europa uma continuação “pirata” escrita por um tal  Alonso Fernandez de Avellaneda, que infelizmente não tinha o mesmo talento do criador do herói original.   Ou felizmente, porque o chamado “livro apócrifo de Dom Quixote” foi o estopim para que o gênio de Cervantes se manifestasse ainda com mais força.
Já no primeiro livro, além da história genial, Cervantes inventou um personagem-autor: o historiador árabe Cide Hamete Benegeli, que aparece na obra só no capítulo IX.  Ao final do capítulo VIII, o narrador conta que o autor (até aquele momento) do livro interrompe a história de Dom Quixote deixando-a inacabada.  Já no capítulo seguinte, o dito narrador encontra um calhamaço escrito em árabe que ao ser traduzido revela a continuação das aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, escrita pelo misterioso Cide Hamete Benegeli. 
No segundo livro a inventividade de Cervantes vai ainda além: Quixote parte para novas proezas e, pelo caminho... encontra leitores do primeiro livro!    Suas antigas histórias e loucuras já são conhecidas por vários personagens e muitas das novas aventuras brotam (ou são forjadas por tais personagens) a partir dessa ideia.    E há brincadeiras com o tempo da narrativa – afinal, o período passado entre as histórias do primeiro e do segundo livro é bem menor do que aquele entre as publicações da obras.  Há comentários, opiniões e desconfianças sobre o enredo feitos pelo próprio Cide Hamete. E também aparecem falsos feitiços, farsas, encenações e até um governo inventado para Sancho Pança administrar. 
Quase no fim do livro, o cavaleiro e seu escudeiro se deparam com um personagem do “livro apócrifo” de Avellaneda – D. Álvaro Tarfe –, que não os reconhece: elegantemente, Cervantes parece querer dizer que seus personagens foram distorcidos pela falta de talento de Avellaneda e que o Dom Quixote e o Sancho Pança encontrados por D. Álvaro “no outro livro” não eram os verdadeiros, mas simples cópias mal feitas, sombras perdidas em uma história ruim.   
Livros, livros-espelhos, espelhos falsos, livros falsos, narradores, outros narradores, narradores falsos, encantamentos e falsos encantamentos.  O que mais se poderia encontrar?
Eu encontrei a humildade.  

***
A humildade não é o reflexo do personagem.  Não é Dom Quixote um homem humilde – aliás, com a leitura constata-se que o herói está muito mais para um escarnecido louco megalomaníaco, que para um idealista romântico, como algumas teorias já tentaram pintar.   
A humildade se revela quando nos deparamos com a grandeza da criação de Miguel de Cervantes Saavedra. Uma criação do início do século XVII que fez brotar várias outras invenções.  E ainda faz, tantos são os artistas influenciados por ela.
É inevitável pensar como alguém, entre 1600 e 1615, tenha criado aquela obra eterna, com seus jogos narrativos e personagens que escapam pelo vão dos dedos do tempo e hoje se esbarram pelas ruas, cruzando com nossas almas.  E reproduzindo almas novas.  
 Diante de um feito como esse, por que devemos nos ufanar das nossas mesquinhas realizações?  Perante a emoção do encontro com Miguel de Cervantes, como pensar em escrever alguma coisa ou ousar se autonomear “escritor”? Para que banalizar palavras como “artista” ou “gênio” diante de uma simples jogada no futebol de final de semana?
Certo que a explosão de criatividade de Cervantes não pode ser culpada pela acomodação diante da sua obra.    Quixote, Sancho, Dulcinea e até o cavalo Rocinante se tornaram de tal forma familiares, que acabamos nos acostumando com eles e nem nos damos mais conta de quanto isso é espantoso.  E o que é pior: deixamos de ler o livro.  Mas Dom Quixote precisa ser redescoberto sem medo, afinal, exceto pela passagem dos moinhos de vento, qual outro episódio o amigo leitor consegue se lembrar? 
A criatividade de Cervantes também não acomodou outros escritores. Pelo contrário: muitas vezes ela serviu de inspiração.   Jorge Luis Borges, James Joyce, Marcel Proust, Guimarães Rosa e Franz Kafka – só para citar alguns autores que, já no século XX, não se deixaram intimidar por Dom Quixote –, alteraram no conteúdo e na forma os caminhos da literatura.

Volta e meia minha ignorância descobre autores “novos” que me fascinam com sua inventividade. Durante a leitura de Cervantes, além das “traições” já confessadas, me espantei com os coelhos tirados da cartola das palavras por Albert Cossery, Flann O'Brien e Philip K. Dick.
Quando digo que encontrei a humildade com a leitura de Dom Quixote, tento dizer que os desvarios do livro e de seus personagens colocaram meus pés no chão.  Conceitos como “sucesso”, “vitória”, “fama”, “realizações”, passaram a ter ainda menos importância.  Como já fiz em um outro Mirante, volto a elogiar o fracasso, a vida do homem comum.   Do que vale me vangloriar de um texto, de uma conquista qualquer?
Enfeitiçado pela louca criação de Cervantes – feito os encantamentos imaginados por Quixote –, enfim abandono a fantasia: humildemente dispo-me da inveja, da vaidade, da mesquinhez e de qualquer presunção.
E livre, me orgulho imensamente da minha humanidade.  De toda a humanidade.


  Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em  18/4 e 2 e 16/5/2014

       

Um comentário:

  1. Também a leitura de suas crônicas " É o prazer se derramando lentamente em forma de palavra escrita."
    Obrigada por todo encantamento que seus escritos transmitem.

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