quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Anestesias

(caio silveira ramos)

Em um Mirante de outras águas, comentei que nos meus desencontros sonhados, se não vislumbro o caminho de casa, vou logo para a rua São João. E no antigo lar dos Boscariol – seu Pedro, dona Terezinha, Jacque, Nando e Ju –, vejo os pesadelos transformados em sonhos tranquilos.  Naquele meu doce refúgio, aquela família me recebe menino e acalenta meu sono até o despertar de um dia sem medo. 
Hoje me achego em outro refúgio dos meus sonhos.  Por coincidência (ou não), assim como no refúgio dos Boscariol eu encontro o doce sorriso de Jacqueline – que hoje é uma grande médica anestesiologista em Piracicaba –, no abrigo que encanta os meus sonhos de hoje, me deparo com Alexandre Alberto Fontana Ferraz, respeitadíssimo profissional piracicabano da mesma área médica que a querida Jacque.  Mas para mim, acima de tudo, ele é simplesmente o Xandão, amigo e irmão eterno.
Ele entrou na minha classe do primeiro ano do ensino médio do Colégio Luiz de Queiroz (CLQ), em 1986. Veio do Dom Bosco e com seu segundo nome – “Alberto” – garantindo o primeiro lugar na chamada entre os onze ou doze “Alexandres” da turma.  Quando chegou, já era o “Xandão”, porque o Alexandre Dalberto, que também viera do Colégio Dom Bosco, desde lá já era o “Xandinho”.
Não me lembro até hoje como nos tornamos amigos: ele se sentou por perto, conversamos algumas coisas, nos vimos completamente diferentes, mas desde o início tivemos profunda simpatia um pelo outro.    Xandão era comunicativo, desinibido, tinha cabelo e roupa descolados.  Jogava tênis, falava inglês fluente, tinha vencido um concurso de criação de logotipo no colégio, se dava bem com as meninas e ainda fazia todo mundo rir com sua lista de “xingamentos aristocráticos” devidamente decorados de um dicionário e recitados em tom de deboche: “sujeito é um pacóvio, um pancrácio...”   Quanto a mim, era tímido, encabulado,  desengonçado nos gestos, nas roupas e no cabelo.  Ele parecia usar óculos só de vez em quando, e ainda (era o que parecia) apenas por “estilo”.  Já eu, por profunda necessidade.  Ele era corintiano.  Eu palmeirense.   Mas apesar de todas as diferenças, nos respeitávamos profundamente e nunca, nunca discutimos.  Nem uma briguinha à toa, mesmo quando ele, nos intervalos das aulas, fazia minha caricatura na lousa (acho que porque a gravura ficava melhor que o original). 
Nos meus sonhos, quando os pesadelos insistem em me procurar, se estou muito longe de casa (o que significa também estar longe da antiga casa dos Boscariol), busco refúgio junto aos Ferraz: lá sou recebido pelos pais do meu amigo como se filho fosse; lá sou abrigado por suas irmãs que, assim como as minhas, adoravam os filmes do John Travolta e sempre me acolhiam com carinho. Lá disputamos vinte partidas na “mesa de botão” mais incrível que eu já vi (e eu perco todas, mas tenho a desculpa de ter aprendido o jogo com regras diferentes). E assistimos a um filme bacana. Ou simplesmente jogamos conversa fora. Lá lembramos que seu Isalberto, pai do Xandão, me presenteou com dois de seus discos, que foram fundamentais para mim: um raríssimo e luxuoso álbum com três LPs de Choro editado pela Associação Atlética do Banco do Brasil (“Chorando Callado”), e o antológico “Ginga no asfalto”, de Germano Mathias, disco que norteou vários rumos da minha vida.  E assim, jogando botão e conversa fora, ouvindo a flauta de Pixinguinha ou o sincopado do Germano, meu pesadelo corre para longe e eu durmo em paz.
Talvez o Dr. Alexandre Alberto – médico amado por todas as senhorinhas que ele atende, acalma e galanteia – também encontre conforto contra o cansaço de seus plantões e cirurgias no abrigo de um sonho qualquer. Num sonho em que ele flutue até a casa da minha infância para jogarmos  basquete, xadrez, tênis de mesa e conversa fora. Lá ele deixa meu pai feliz por pedir mais uma xícara daquele seu café inesquecível. Lá somos ainda meninos.
E sabemos despistar o tempo e qualquer pesadelo.

***
Irmão cuidadoso que sempre foi, Xandão não jogou seu amigo tímido e encabulado para escanteio, nem mesmo quando começou a namorar a Daniela, hoje sua mulher e mãe de suas igualmente lindas filhas Isabela e Bárbara (que logicamente “puxaram” a mãe).    E em grandes – felicíssimos ou difíceis – momentos da minha vida, ele esteve por perto.  Neste instante me lembro especialmente de dois.
No dia em que sairia o resultado do vestibular, ele quem foi ver o resultado.  Como o tempo corria e eu não tinha notícias, fui desiludido esperar na janela de casa: Xandão estaria pensando, naquele momento, como me dizer que eu não tinha passado.  De repente, vejo meu amigo descendo a rua de bicicleta. Ele também me viu e abaixou a cabeça contrafeito.  Pressenti o pior. Xandão parou embaixo da janela, olhou para mim muito sério e balançando a cabeça negativamente disse: você... (gritando) passou!! Saí correndo para abraçar meus pais e abrir a porta para ele. 
E comemoramos exultantes o meu sonho realizado: eu iria me encontrar no Largo São Francisco; ele seguiria para Botucatu atrás também do seu sonho de cursar Medicina.   Ficaríamos mais longe um do outro, construindo carreiras e famílias.
Anos depois, porém, quando se perdia de mim uma das mais amadas partes da minha alma, ele estava por perto.   Como médicos competentes e humanos (como todo médico dever ser), ele e sua colega Jacque Boscariol estiveram presentes, tentando tudo que era possível, aliviando a dor física com sua ciência, amainando a dor do espírito com o coração.    Quando a medicina esgotou todos os seus recursos, ele e novamente Jacque Boscariol foram ao meu encontro para me dar o ombro e o conforto no dia da despedida da minha irmã Ruth.  No olhar de cada um, ambos anestesiologistas, cabiam o abrigo, o amor e a segurança que eles e suas famílias colocaram na minha infância, na minha juventude, nos meus sonhos tortuosos e na minha vida.
E pelo abraço de Xandão e Jacque, anestesiou-se um pouco a dor da minha alma. E eu pude continuar o meu caminho.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 12 e 26/7/2013 e 




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