(caio silveira
ramos)
Em um Mirante de outras águas, comentei que nos meus
desencontros sonhados, se não vislumbro o caminho de casa, vou logo para a rua
São João. E no antigo lar dos Boscariol – seu Pedro, dona Terezinha, Jacque,
Nando e Ju –, vejo os pesadelos transformados em sonhos tranquilos.
Naquele meu doce refúgio, aquela família me recebe menino e acalenta meu sono
até o despertar de um dia sem medo.
Hoje me achego em outro refúgio dos meus sonhos. Por
coincidência (ou não), assim como no refúgio dos Boscariol eu encontro o doce
sorriso de Jacqueline – que hoje é uma grande médica anestesiologista em
Piracicaba –, no abrigo que encanta os meus sonhos de hoje, me deparo com
Alexandre Alberto Fontana Ferraz, respeitadíssimo profissional piracicabano da
mesma área médica que a querida Jacque. Mas para mim, acima de tudo, ele
é simplesmente o Xandão, amigo e irmão eterno.
Ele entrou na minha classe do primeiro ano do ensino médio do
Colégio Luiz de Queiroz (CLQ), em 1986. Veio do Dom Bosco e com seu segundo
nome – “Alberto” – garantindo o primeiro lugar na chamada entre os onze ou doze
“Alexandres” da turma. Quando chegou, já era o “Xandão”, porque o
Alexandre Dalberto, que também viera do Colégio Dom Bosco, desde lá já era o
“Xandinho”.
Não me lembro até hoje como nos tornamos amigos: ele se sentou
por perto, conversamos algumas coisas, nos vimos completamente diferentes, mas
desde o início tivemos profunda simpatia um pelo outro.
Xandão era comunicativo, desinibido, tinha cabelo e roupa descolados.
Jogava tênis, falava inglês fluente, tinha vencido um concurso de criação de
logotipo no colégio, se dava bem com as meninas e ainda fazia todo mundo rir
com sua lista de “xingamentos aristocráticos” devidamente decorados de um
dicionário e recitados em tom de deboche: “sujeito é um pacóvio, um
pancrácio...” Quanto a mim, era tímido, encabulado,
desengonçado nos gestos, nas roupas e no cabelo. Ele parecia usar óculos
só de vez em quando, e ainda (era o que parecia) apenas por “estilo”. Já
eu, por profunda necessidade. Ele era corintiano. Eu
palmeirense. Mas apesar de todas as diferenças, nos respeitávamos
profundamente e nunca, nunca discutimos. Nem uma briguinha à toa, mesmo
quando ele, nos intervalos das aulas, fazia minha caricatura na lousa (acho que
porque a gravura ficava melhor que o original).
Nos meus sonhos, quando os pesadelos insistem em me procurar, se
estou muito longe de casa (o que significa também estar longe da antiga casa
dos Boscariol), busco refúgio junto aos Ferraz: lá sou recebido pelos pais do
meu amigo como se filho fosse; lá sou abrigado por suas irmãs que, assim como
as minhas, adoravam os filmes do John Travolta e sempre me acolhiam com
carinho. Lá disputamos vinte partidas na “mesa de botão” mais incrível que eu
já vi (e eu perco todas, mas tenho a desculpa de ter aprendido o jogo com
regras diferentes). E assistimos a um filme bacana. Ou simplesmente jogamos
conversa fora. Lá lembramos que seu Isalberto, pai do Xandão, me presenteou com
dois de seus discos, que foram fundamentais para mim: um raríssimo e luxuoso
álbum com três LPs de Choro editado pela Associação Atlética do Banco do Brasil
(“Chorando Callado”), e o
antológico “Ginga no asfalto”, de Germano Mathias, disco que norteou vários
rumos da minha vida. E assim, jogando botão e conversa fora, ouvindo a
flauta de Pixinguinha ou o sincopado do Germano, meu pesadelo corre para longe
e eu durmo em paz.
Talvez o Dr. Alexandre Alberto – médico amado por todas as
senhorinhas que ele atende, acalma e galanteia – também encontre conforto
contra o cansaço de seus plantões e cirurgias no abrigo de um sonho qualquer.
Num sonho em que ele flutue até a casa da minha infância para jogarmos basquete, xadrez, tênis de mesa e conversa
fora. Lá ele deixa meu pai feliz por pedir mais uma xícara daquele seu café
inesquecível. Lá somos ainda meninos.
E sabemos despistar o tempo e qualquer pesadelo.
***
Irmão cuidadoso que sempre foi, Xandão não jogou seu amigo
tímido e encabulado para escanteio, nem mesmo quando começou a namorar a
Daniela, hoje sua mulher e mãe de suas igualmente lindas filhas Isabela e
Bárbara (que logicamente “puxaram” a mãe). E em grandes –
felicíssimos ou difíceis – momentos da minha vida, ele esteve por perto.
Neste instante me lembro especialmente de dois.
No dia em que sairia o resultado do vestibular, ele quem foi ver
o resultado. Como o tempo corria e eu não tinha notícias, fui desiludido esperar
na janela de casa: Xandão estaria pensando, naquele momento, como me dizer que
eu não tinha passado. De repente, vejo meu amigo descendo a rua de
bicicleta. Ele também me viu e abaixou a cabeça contrafeito. Pressenti o
pior. Xandão parou embaixo da janela, olhou para mim muito sério e balançando a
cabeça negativamente disse: você... (gritando) passou!! Saí correndo para
abraçar meus pais e abrir a porta para ele.
E comemoramos exultantes o meu sonho realizado: eu iria me encontrar no Largo São Francisco; ele seguiria para Botucatu atrás também do seu sonho de cursar Medicina. Ficaríamos mais longe um do outro, construindo carreiras e famílias.
E comemoramos exultantes o meu sonho realizado: eu iria me encontrar no Largo São Francisco; ele seguiria para Botucatu atrás também do seu sonho de cursar Medicina. Ficaríamos mais longe um do outro, construindo carreiras e famílias.
Anos depois, porém, quando se perdia de mim uma das mais amadas
partes da minha alma, ele estava por perto. Como médicos
competentes e humanos (como todo médico dever ser), ele e sua colega Jacque
Boscariol estiveram presentes, tentando tudo que era possível, aliviando a dor
física com sua ciência, amainando a dor do espírito com o coração.
Quando a medicina esgotou todos os seus recursos, ele e novamente Jacque
Boscariol foram ao meu encontro para me dar o ombro e o conforto no dia da
despedida da minha irmã Ruth. No olhar de cada um, ambos
anestesiologistas, cabiam o abrigo, o amor e a segurança que eles e suas
famílias colocaram na minha infância, na minha juventude, nos meus sonhos
tortuosos e na minha vida.
E pelo abraço de Xandão e Jacque, anestesiou-se um pouco a dor
da minha alma. E eu pude continuar o meu caminho.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 12 e 26/7/2013 e
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